Numa entrevista longa exclusivamente dedicada a guarda-redes Arsène Wenger dá a sua opinião sobre a posição à revista oficial do Arsenal FC, lançada este mês. O Mundo dos Guarda-Redes traduz as declarações do treinador Francês nas próximas linhas.
“Magazine Arsenal: Arsène, o que quer dar a entender quando diz que o guarda-redes é a posição mais subvalorizada no relvado?
Arsène Wenger: O que quero dizer é que os resultados e o sucesso de uma equipa de Futebol têm uma grande influência em termos de eficácia. Lembram-se sempre que estava 0-0 quando o avançado marcou mas esquecem que o guarda-redes manteve a equipa no jogo.
Quando vences 1-0 numa final, por exemplo, durante décadas as pessoas lembram o jogador que marcou o golo, mas ninguém fala do guarda-redes que, talvez, manteve a equipa em jogo com três defesas vitais. Portanto, ele fez três vezes mais do que o jogador que marcou o golo, mas não é valorizado. É isso que quero dizer quando falo em subvalorizado. Também, porque é uma posição menos glamorosa no mesmo mercado de transferências um avançado do nível de um guarda-redes custa três vezes mais que um guardião.
Novamente, isso é a consequência de ser uma posição subvalorizada. Acima de tudo, quando digo subvalorizada quero falar também na dificuldade que é ter sucesso nesta posição, comparada com um jogador de campo. Porquê? Porque tens um jogador como Petr Cech, por exemplo, que tem 33 anos e o guarda-redes que está atrás dele tem de esperar catorze anos para ter a sua chance porque Petr Cech começou a jogar aos vinte e vai jogar até aos 37 ou 38 anos, portanto temos de nos lembrar das gerações de guarda-redes que ficaram à espera atrás dele, a trabalhar forte na esperança de ter uma chance… que nunca chegaram ou chegarão a ter.
O guarda-redes só consegue jogar numa posição e por isso ele não tem sorte, porque o guarda-redes à frente dele não lhe dá chances. Acredito que se perdem gerações de guarda-redes porque não suficientes posições disponíveis para ele.
MA: Esses fatores devem afetar o caráter deles… por isso como sumariza a personalidade de um guarda-redes?
AW: Resumo isso ao dizer que, normalmente, a posição de guarda-redes exige maturidade e responsabilidade. Não consigo ver um guarda-redes no Mundo que não assuma o seu próprio treino e o seu próprio comportamento. Sempre, desde que sou treinador, que o guarda-redes é o sujeito que é responsável, dedicado, concentrado e desejoso por treinar. A diferença é que os jogadores mais talentosos e criativos são os avançados.
O guarda-redes, talentoso ou não, é alguém concentrado todos os dias e não há treino que baste para ele porque ele sabe que paga por cada erro que comete. O guarda-redes sabe que os erros dos defesas centrais ou laterais são para ele “consertar”. Tem de estar comprometido com a causa e isso faz dele uma pessoa matura desde idade precoce, de personalidade muito forte.
Basicamente, os guarda-redes tornam-se num grupo desportivo individual na preparação de uma equipa, uma vez que têm de estar 100 por cento preparados porque se eles não estão sabem que não vão ter chances. Depois disso, é um trabalho onde, psicologicamente, precisas de ter uma força inacreditável.
O guarda-redes é isolado em 90 por cento das ocasiões negativas. Perguntam-me se o guarda-redes devia defender aquilo… e o guarda-redes é visível na televisão, por norma, quando comete um erro. É por isso que é preciso ser-se muito sólido mentalmente também.
MA: Como treinador, como integra os guarda-redes no grupo enquanto a posição é assim algo tão individual?
AW: É importante que ele tenha boa relação com os defesas centrais e com os laterais em especial – tentas sempre que ele se aproxime dos defesas. Portanto, é importante que eles tenham uma boa relação e também comunicação. Tentas desenvolver isso. Pergunta-se ao guarda-redes, também, a sua opinião sobre a frente defensiva porque o guarda-redes também está na posição de treinador.
O guarda-redes é a segunda melhor posição, se não a melhor para ser defesa dos treinadores porque todos os outros jogadores em campo têm uma grande desvantagem: têm de se mover. Quando se movem eles não vêm sempre o que se está a passar. O guarda-redes está na posição de câmara. Sabe logo se o médio ou o avançado estão em má posição quando o perigo está para vir. Portanto é, normalmente, um bom treinador. É importante que o guarda-redes também tenha boas conexões com os treinadores.
MA: E como se assegura que eles trabalham num bom ambiente com os outros guarda-redes do clube?
AW: Tens dois tipos de guarda-redes. O que cria guerra com os outros guarda-redes para o desencorajar do sentimento de que um dia terá a chance de ser titular. Ou então os que dizem “Estamos no mesmo banco. De momento estou à tua frente, mas vou tentar te ajudar.” Provavelmente esses sofreram em algum momento das suas carreiras.
Petr Cech, por exemplo, não jogou muito na época passada e é importante saber o que se passa na cabeça de um jogador que não joga. Penso que isso torna mais fácil a criação dessa conexão.
Nós [Arsenal] somos sortudos. Acredito que David Ospina não recebeu crédito suficiente pelo que fez na época passada o que, para mim, foi excepcional. Quero dizer que não teria mudado de guarda-redes se a oportunidade de assinar com Petr Cech não tivesse aparecido. Foi praticamente um caso indescritível quando ele ficou disponível. Fiquei muito feliz com o David Opsina – penso que é um guarda-redes de classe Mundial. Há uma boa relação entre eles e isso é uma dádiva para o treinador e os restantes técnicos.
MA: Atendendo às poucas oportunidades para jogar, os empréstimos são ainda mais importantes para os guarda-redes?
AW: Sim, porque para os guarda-redes é uma frustração eternal porque nunca se muda de guarda-redes a não ser que surja um “acidente” ou uma lesão. Para jovens guarda-redes penso que é ainda uma frustração maior. Se pegar em vinte equipas na Premier League, a cada duas os dois guarda-redes da equipa principal são de classe top. Atrás deles, em todas as Academias, tens pelo menos seis guarda-redes que esperam um dia ser titulares.
Multiplicam-se essas vinte Academias por seis e tens 120 guarda-redes. Onde é que eles podem jogar? Sem dois guarda-redes bons não podes ter uma boa sessão de treinos e isso é um dos problemas básicos das academias. Portanto é bom se eles saírem e conseguirem adquirir experiência.
De momento, à parte dos guarda-redes que estão atrás de Petr Cech e David Ospina, também temos guarda-redes emprestados – Emiliano Martínez, que é de classe top, e Wojciech Szczesny, que é um jogador utilizado regularmente na AS Roma, que não é um clube pequeno! Estamos bem equipados com quatro guarda-redes de classe top que têm experiência e também dois guarda-redes das camadas jovens atrás deles.
MA: Qual acha ser a idade de explosão para um guarda-redes?
AW: A idade de afirmação e explosão é compreendida entre os 28 e os 36 ou 37 anos. É onde se absorve as balas – tens a experiência e também tens a qualidade física para jogar. Para um jogador é sempre importante ter um balanço entre experiência e potencial físico. Infelizmente, precisamos do nosso corpo para expressar o que nós sabemos. O nosso corpo permite-nos desempenhar mais na posição de guarda-redes, comparada com a de avançado.
MA: Acha que a experiência é a característica mais importante na qualidade de um guarda-redes?
AW: Sim, acho. No começo, é o mesmo para todos – precisas de talento, inteligência e motivação. Mas porque eles [guarda-redes] são inteligentes e porque eles estão motivados, aprendem a cada erro que cometem. Depois, a experiência vem ao de cima por causa disso. Para mim é a qualidade mais importante. O problema é que para ter experiência é preciso ter qualidade – é um círculo vicioso! Precisas de jogar.
As pessoas perguntam-me por que não comprei um guarda-redes de classe Mundial há uns anos. É porque penso que Wojciech Szczesny é de classe Mundial, mas também sei que a cada época que ele jogar ele vai-se tornar mais forte. Se não pensares assim, nunca vais produzir nenhum guarda-redes. Não se consegue manipular a velocidade do seu desenvolvimento. Petr Cech jogou quando era muito jovem e Gianluigi Buffon também já estava a jogar aos dezassete anos. Eles tiveram a sorte de entrar na primeira equipa para aglomerar experiência e ser bom o suficiente para lá permanecer.
MA: Os guarda-redes são muitas vezes afetados pelas mudanças de regas. Eles têm de ser maleáveis, adaptáveis, não têm?
AW: Sim, têm de crescer com a evolução e é verdade que com toda a evolução ao longo do jogo há sempre algo que é retirado aos guarda-redes. É engraçado quando se olha para fotos antigas. Recentemente vi umas imagens antigas do Liverpool e vê-se Bruce Grobbelaar a receber a bola numa atraso, apanhá-la e correr dentro da área.
A regra do passe atrasado foi uma adaptação disso e a consequência é que, basicamente, os guarda-redes têm de ser cada vez mais um jogador de campo. Mais do que nunca. Hoje integramos mais vezes o guarda-redes no treino ou sempre que podemos como um jogador de campo também. Eles precisam de saber como sair de uma situação apertada, quando um jogador lhes fecha as linhas de passe. Precisam de saber como fazê-lo num toque invés de dois. Isso é muito importante e aqueles que não se conseguem adaptar ficam de fora do jogo.
MA: Gostaria de ver mais mudanças nas regras para parar com o desperdício de tempo dos guarda-redes?
AW: O que me deixa maluco é quando os guarda-redes fazem isso no início do jogo, quando está 0-0. Pensas “anda lá amigo, estas pessoas pagaram muito dinheiro para ver Futebol, não para te ver perder tempo.” Penso, às vezes, que os árbitro não tomam decisões cedo o suficiente nos jogos.
Se um guarda-redes começa a perder tempo após cinco minutos mas só recebe o cartão amarelo aos 85, ele fica todo feliz. Consegue viver com esse cartão confortavelmente. Mas se o árbitro lhe dá o cartão amarelo ao fim de cinco minutos será diferente porque ele sabe que se recebe outro, está expulso. É isso que me deixa nervoso às vezes.
MA: Gostaria de ver outras mudanças, além disso?
AW: Não penso que conseguimos fazer mais mudanças agora, se não chega-se a um ponto em que se diz que os guarda-redes não podem usar as mãos! Penso que já foi feito o suficiente. Qual é a próxima evolução? Não sei, mas parece-me que as mudanças futuras devem ser menores. Guarda-Redes já não são problemas nos jogos – de fato, tornaram-se numa arma.
São agora melhores Futebolistas e a equipa constrói-se a partir de trás. A única evolução que pode surgir agora é não poderem ser multiplicados os passes atrasados para o guarda-redes. Com isso quero dizer que se pode limitar em um ou dois atrasos depois de se passar a linha do meio-campo. Teria de se jogar para a frente depois da bola ir ao guarda-redes.
MA: Porque é que acha que não são muitos os guarda-redes que se tornam treinadores principais?
AW: Há duas razões para isso. Primeiro porque já sofreram o suficiente nas suas carreiras. Jogam até mais tarde que os outros jogadores, portanto quando param já têm 40 ou 41 anos e eles querem ver algo diferente nas suas vidas.
A segunda razão penso que é por ser diferentes psicologicamente. Acredito que são mais conscientes da dificuldade do jogo ao longo das suas carreiras.
É verdade de que eles são profundamente diferentes psicologicamente do que os outros jogadores. Já experimentaram o sentimento de serem responsáveis pela vida deles, mais do que os outros jogadores. Isso pode fazê-los sentir: “Já não quero fazer parti disto – já tive o suficiente!”
MA: Pensa que os guarda-redes são, basicamente, jogadores de campo frustrados?
AW: Não, não penso isso. Nem sequer é o sentimento que tenho. Sinto que eles sentem-se felizes e orgulhosos da sua posição. São pessoas especiais no nosso Desporto – têm um trabalho diferente de toda a gente. Já disse muitas vezes: o avançado é um jogador que ama vencer, enquanto o guarda-redes é o jogador que detesta perder. Têm um perfil diferente.
MA: Já treinou muitos jogadores que pensou que dariam bons guarda-redes?
AW: Sim e muitas das vezes são os avançados.
MA: Quem iria para a baliza se o Arsenal tivesse um guarda-redes expulso?
AW: Isso seria um grande problema para mim, porque nunca pensei nisso. Normalmente são os defesas centrais ou os avançados. Tinha o George Weah no AS Monaco e ele era um guarda-redes fantástico no treino. Provavelmente um jogador que jogou Basquetebol na sua juventude seria bom, ele seria usado por ter usado as mãos.
Na nossa equipa não penso quem nos serviria, era um problema maior antes, quando não tínhamos guarda-redes suplente. Ainda pode acontecer num jogo, contudo. Teria de tomar uma decisão instintiva – talvez fosse Olivier Giroud.
