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A louca solidão de um líder nato – Profissão Guarda-Redes por António Valente Cardoso

A louca solidão de um líder nato – Profissão Guarda-Redes por António Valente Cardoso
13 Setembro, 2014 | por Roberto Rivelino
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Profissão Guarda-Redes

A louca solidão de um líder
nato

Ser guarda-redes é uma vocação, é
um amor e um ódio, é a máxima individualidade de um desporto colectivo.
No passado e durante décadas, a
escolha guarda-redes recaía sobre os ‘pés quadrados’, os ‘gordos’, todos os que
demonstravam menos jeito para fazerem parte da equipa. Assim, colocavam-se na
baliza, por destino ou falta dele, ganhando maior ou menor gosto pela mais
ingrata posição do universo desportivo, o derradeiro culpado muito mais vezes do
que o último grande herói.
Mas as redes exercem um fascínio
quase imemorial. Os craques adoram fazer uma perninha na baliza. É comum nos
treinos ver os mais dotados rumarem voluntariamente às balizas, voarem na
tentativa de pararem os remates dos companheiros, entrarem a pés sobre os
colegas de fintas e ficarem irritados quando os guardiões, feitos jogadores de
campo numa total inversão de papéis, os fintam, os enganam, deixando-os de
rastos, tantas vezes ajoelhados sob o peso de um golo mal sofrido.
Escolher a baliza é optar pela
máxima responsabilidade, é querer ser vilão e herói, qual película
cinematográfica, é assumir o papel de protagonista a solo, ninguém por trás,
liderando ao mesmo tempo um pelotão defensivo, uma companhia colectiva, um
exército rumo à vitória.
Voa, brilha, larga, falha, tudo
pode acontecer num espaço de segundos, ao estilo do melhor filme de acção ou de
um qualquer título de suspense que Hitchcock tenha delineado.
Dos 90 centímetros do Pólo
Aquático aos 2,40 do hóquei em campo ou 2,44 metros do futebol, passando pelo
hóquei em patins ou no gelo, pelo andebol ou futsal, pelo bandy ou floorball,
escolher defender as redes do forte, do castelo, demonstra uma fé inabalável no
indivíduo, um elevado nível de auto-estima, uma capacidade de liderança apenas
aproximada por aquele que exige ser ele a bater o penalti decisivo. É querer
decidir, é querer fazer a diferença, é querer deixar marca, é assumir o último
risco, é envergar a bandeira enquanto se mantém na última linha de defesa ante o
inimigo, sem cair, nunca cair!
O abraço do colega, do
companheiro na hora da falha, pois todos falham, é um expressar de alívio dele
mesmo. Um suspiro equivalente ao “ainda bem que não fui eu, tu é que és o
guarda-redes, deixa lá”. Mas nota-se a tremideira, a falta de confiança
depositada pela equipa no seu último pilar, no seu primeiro pilar. O oposto é
distinto, a falha do defesa é rebatida pelo guardião do templo das redes
sagradas, injecta coragem, quer o elemento à sua frente agressivo e pronto a
recuperar do erro, passa-lhe a primeira bola, empurra-o para a retoma, ao nível
do melhor líder.
Do mais calmo se ouve o engrossar
de voz, a subida de tom para a recuperação defensiva, para a atenção à
marcação, sempre a falar dentro do campo, mesmo que quase mudo fora dele. Líder,
da linha da última defesa se faz ecoar até à linha de golo oponente, voz de
incentivo, de aviso, de recuperação, sempre capitão mesmo sem braçadeira,
sempre general mesmo sem exército, sempre soldado pronto para assegurar a
derradeira linha de defesa!

A loucura de um ser. É
extraordinário experimentar as posições de guarda-redes e jogador de campo,
sentir as diferenças, seja no futebol, no futsal ou no andebol, para apenas
tocar na experimentação própria. Ainda mais fantástico é ser louco ao ponto de
ser guarda-redes de campo, olhar para Chilavert ou Jorge Campos, Luís Amado ou
Marcão, ir mais além da pura defesa das redes que se querem inexpugnáveis.
Agarrar uma bola e sair desenfreado rumo à baliza contrária, também é esta a
loucura do guarda-redes, sair a jogar, fazer um passe letal, cobrir todo um
meio-campo, saber subir, olhar o adversário com altivez, pintar toda uma metade
de campo com a matiz da camisola envergada, uma camisola diferente de todos os
outros, claro está! Intimidar o adversário, seja pelas loucas saídas, pelos
fortes remates, pelos longos lançamentos de braço ou por um mero olhar,
definidor! Tudo isto é de guarda-redes, tudo isto e muito mais! 
– António Valente Cardoso

– Jornalista, historiador e investigador desportivo

– Ideólogo do Observatório Ligas Europeias Futebol

– Autor do livro Globall, A Globalização e os Mundiais de Futebol